O JOÃO DAS VACAS
- Marco Alves
- 15 de mai. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 2 de jun. de 2023

João era um rapaz de doze anos, filho de agricultores, bastante reservado. Vivia numa quinta, numa aldeia rural, e frequentava a escola. Andava no “ciclo”.
A socialização não era o seu ponto forte. Gostava de ficar no "seu canto", não se meter em intrigas. Era gozado pelos colegas… Ou pela roupa que trazia, por estar sempre calado, pelo (des)penteado, enfim, por tudo e por nada.
O João levantava-se às seis da manhã para ajudar os pais nas lides domésticas. Fazia a sua higiene pessoal à pressa, soltava o gado e alimentava os coelhos e as galinhas, tarefa diária, sete dias por semana. Às sete e meia tinha de sair a correr para, a pé, chegar a tempo à aula das 8h30.
Muitas vezes cansado e com sono, não perdia cada palavra “deliciosa” na explicação de cada professor. Uns diziam:
- O João das vacas é um marrão, que escova!
Tinha dificuldade em fazer amigos. Por isso, estava sempre isolado das brincadeiras, muitas vezes, maquiavélicas dos colegas de turma. Só tinha uma pessoa, que nunca consigo falou, mas que o admirava e, ao mesmo tempo, tinha pena dele. Era a Maria. Uma menina citadina que tinha vindo morar para a aldeia.
Nos intervalos, João aproveitava para comer uma sandes de marmelada, carinhosamente preparada pela mãe. Era novamente gozado. Mais um motivo de "chacota". Enquanto os colegas bebiam um iogurte de frutos silvestres, acompanhados de bolachas de chocolate, ele ignorava e saboreava aquele pão, que era fruto do trabalho e do marmeleiro lá de casa. Conhecia cada passo, cada lavor, até chegar à sua boca.
Os anos foram passando…
O João atingira, agora, a maioridade. Tinha 18 anos. Acabara o ensino secundário e apesar de ter a nota mais alta da turma, não prosseguiu estudos. Achava que a sua paixão era o campo, sim, e as suas vacas.
Seis anos depois, ainda ouvia:
- Só falas com as vaquinhas? O Marrão não quer ir para a universidade!
Mantinha a mesma postura. Não respondia, nem se exaltava.
Os pais, ao comprovarem a sua excelência como aluno, incentivaram-no a concorrer à universidade.
- Filho, nós fazemos esse esforço. Vai e forma-te!
João apenas disse:
- Queridos pais, se gostam de mim, se querem o meu melhor, deixem-me agora ter a minha primeira decisão. Eu quero estar aqui, junto de vós, na nossa quinta. Eu quero estar perto desta natureza incrível. Lá fora, o mundo é muito cruel. Aqui eu sinto-me eu!
E assim foi. Os pais respeitaram a sua vontade.
Terminada a escola, João já não se levantava às seis… A essa hora já estava no campo, chamando pela preta, turina, amarela… Que alegria!
Dizia ele, com todo um enorme entusiamo:
- Deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz viver!
A Maria começou a frequentar a sua casa. As brincadeiras eram o trabalho. Mas aquele trabalho… Ambos, só pensavam naquele cheiro a terra, no chilrear das aves, naquele perfume da erva acabada de cortar.
E assim viveu, mais seis anos.
Os seus amigos andavam na universidade. Já deveriam estar a acabar o curso. Mas a boémia… Estavam todos atrasados. Os que conseguiram terminar não tinham emprego. Continuavam em casa dos pais sem fazer nada.
Foi a Maria, que teve a iniciativa de lhe dizer que gostava muito dele e que… que gostaria de viver sempre assim com ele. O João demorou a responder. Não sabia o que dizer. Mas lá saiu:
- Queres casar-te comigo?
Ela, sem hesitar, disse que sim e beijou-o. Foi o primeiro beijo do João, aos 24 anos.
E assim foi. Marcou-se o casamento, na altura das desfolhadas, com direito a matança do porco. Convidaram-se os familiares, amigos e vizinhos e, depois da igreja, fez-se uma grande festa na eira. O António tocador trouxera a concertina e foi uma grande diversão. As senhoras mais velhas, sentadas nas pedras, aproveitaram para acompanhar o canto, enquanto desfolhavam algumas espigas. Os homens traziam o pipo de vinho e com as tijelas iam servindo todos os restantes. A eira tornara-se num salão de festas. Apenas à luz do luar, e já todos descalços, a festa durou até às 3 horas da manhã. Já era tarde…
Sim, no dia seguinte, era necessário levantar cedo para levar o gado a pastar.
A seu trabalho ia crescendo de dia para dia. Era necessário ter mais gente na quinta.
João, sem hesitar, procurou alguns dos seus colegas de escola e deu-lhes trabalho. Muitos, tentaram pedir-lhe desculpa por palavras ou atos menos próprios. No entanto, João apenas disse:
A vida é uma escola. Vamos errando e sempre aprendendo. Talvez eu tenho aprendido demasiado cedo, por isso, vos recebo de braços abertos, dirigindo-vos, agora, as minhas sinceras palavras: Sejam bem-vindos! Tudo o que conseguirmos cultivar aqui será repartido por todos!
Marco Alves, 15 de maio de 2020
Comments