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Pampas frágeis
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O GARRAFÃO DE VINHO, OS BAGOS E O BACALHAU

  • Foto do escritor: Marco Alves
    Marco Alves
  • 19 de mai. de 2020
  • 3 min de leitura

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Seis da manhã e, no portão da frente, já tocava a campainha. Era o tão esperado dia das vindimas. Era o dia cinco de outubro.

Os homens iam entrando com as pesadas escadas de madeira. Orgulhosamente, desfilavam para ver aquelas que tinham, nos banzos, o maior número de degraus. E era, de facto, necessário. As latadas eram altas. Só algumas delas conseguiam chegar ao entrelaçado das ramadas.

Chegavam mais de trinta escadas…

Ao lado dos homens, vinham sempre as mulheres com a cesta de vime e o balde de plástico. A cesta com o ganho de ferro seria para o homem. A balde servia a mulher na apanha dos bagos.

E assim começava o dia. Depois de um bagacinho, um cálice de vinho do porto ou de um traçadinho, acompanhados de uns deliciosos biscoitos, cada um, na sua escada e com a sua cesta, ia apoiando a escada nos arames. Subia, colhia e descia, já com a cesta quase cheia. Era uma abundância.

Havia sempre quem cantasse… Que espírito magnífico!

Em baixo, as mulheres acompanhavam o canto, enquanto procuravam, entre as ervas, os bagos soltos das uvas. Soltavam-se muito dos cachos. Pois, não havia tesouras… Eram as unhas das mãos ou então umas de metal, enfiadas justamente no polegar.

Na faina, andavam mais de quarenta pessoas. Eram os amigos e os vizinhos.

Entretanto, os de casa iam já trazendo as mesas e bancos de madeira que já não eram utilizados há um ano. Sim, desde a última vindima. Os pequenos iam limpando e colocando as toalhas, e os adultos confecionando algo com cheiro a fritos.

Por volta das dez da manhã era tempo de descansar e recuperar forças. Desciam a quinta e debaixo da varanda, deliciava-se uma boa posta de bacalhau salgado, acompanhado de uma tigela grande que era repartida por cinco ou seis pessoas. (Nunca eu pensara em comer bacalhau, tão cedo, mas sabia tão bem. Não bebia vinho, mas a água, proveniente das minas da Joubreia, aliviava o sal do bacalhau panado em ovo).

Meia hora depois, já uns iam dando o mote que era necessário voltar à vindima, para não ficar noite adentro. Já ia custando mais subir a escada. Agora, os cantos mais envergonhados tornavam-se num coro perfeito. O que não faz uma tigelinha do bom!

E era só mais uma horinha e meia até ao almoço. Com mais de metade já vindimado, entre as verdejantes ramas das videiras, alguns iam perguntando se já era para descer. Talvez, este ano, fosse aquela deliciosa feijoada.

E lá ia eu quinta acima, chamar para almoçar. E que prontidão! Mal acaba de proferir as palavras, já alguns iam descendo à minha frente.

Na descida aproveitava para ouvir algumas estórias e outras histórias do António Marra, do Zeca da Cândida ou do Adão Barqueiro.

Entre grandes risadas, o almoço demorava sempre uma horita e meia. Mas era uma delícia ver toda aquela gente feliz sentada frente-a-frente com um enorme sorriso no rosto. Não se notava qualquer cansaço.

De repente, alguém se levantava, e dizia:

- Vamos lá terminar até às cinco da tarde.

O percurso, na subida íngreme, parecia agora um verdadeiro combate. Alguns davam três passos para a frente e um para trás. Mas, aos poucos, lá iam chegando ao destino.

As mulheres já diziam:

- Tem cuidado a subir a escada, vê lá!

Se ao começar a música era mais inibida e, depois, se foi tornando num coro harmonioso, bem, agora, já se cantava à desgarrada. Cada um ia tentando cantar mais alto, até mesmo berrando. Entre algumas desafinações, o que imperava era, certamente uma grande risada e boa disposição.

Resultado das tigeladas, já acostumadas, o número de bagos no chão aumentava a tarefa das mulheres. Algumas, já não conseguiam chegar a tempo de levar os cestos ao lagar e de os despejar na moedeira. Tinham de se despachar, após a moagem das uvas, para ainda darem uma mão na apanha dos bagos. Era uma correria!

Havia ainda alguém que encontrava ninhos velhos e gritava:

- Este era de melro!

Bem, uvas apanhadas, lá iam todos descendo. Algumas escadas iam embatendo nas pedras do valado e já não era por causa das tigeladas, era o cansaço daquela escada de madeira, de subir e descer constantemente.

Novamente debaixo da varanda, depois de um bom petisco, acompanhado do verde bom, havia abraços e um muito obrigado.

Depois, já noitinha, lá iam saindo, um a um, portão fora, na promessa de voltarem para o ano, não sem antes se combinar a entrega dos garrafões de vinho da colheita desse ano, que era fruto do trabalho de todos.

Assim se vivia genuinamente em comunidade e partilha!

Marco Alves, 19 de maio de 2020

 
 
 

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