O CARROÇO DE MADEIRA
- Marco Alves
- 23 de mai. de 2020
- 4 min de leitura

Mais um dia, mais uma folha para acrescentar ao livro da vida.
Estava sentado, nas escadas de pedra da minha casa, à espera de que o meu pai chegasse, no camião amarelo. E chegou, pouco depois. Esperei que saísse. Dez minutos depois, já estava eu lá dentro, imaginando-me a conduzir por estradas e montes. Na minha imaginação, a estrada tinha sempre muitas curvas.
Bem, mas era melhor sair antes que o meu pai me visse e me desse um ralhete…
E lá saí a correr, portão fora, manobrando um volante, apenas imaginário, e produzindo os sons do motor da viatura, até à casa da minha tia Irene. Era lá que passava também muito do muito tempo. Ao entrar o portão, sem me aperceber, o meu tio Daniel observava-me atentamente. Parei e comecei a chamar:
- Tio? Tio Daniel?
Eis, então, que ele surge, do meu lado esquerdo, e a rir-se.
Foi, assim, que ele me disse, com aquele seu sorriso brincalhão:
- Então, vieste de carro?
Fiquei um pouco envergonhado. Ele apercebera-se da minha imaginária condução.
Tentei desviar o assunto.
- Tio, vim ajudar a arrumar a lenha.
Ele esboçou, mais uma vez, um sorriso e iniciámos a tarefa.
Uma hora depois, empilhada toda a lenha, o tio Daniel foi buscar duas cebolas. Colocou-as numa toalha com sal e apertou-as com a mão. Deu-me uma e disse que era para comer. Inicialmente, fiquei reticente e esperei que ele começasse a comer a dele, (não fosse mais uma das suas brincadeiras). Mas não era. Ele começou e eu ganhei coragem para a minha. Não estava à espera de que uma coisa tão simples me fosse deliciar daquela forma.
Foi, então, que o meu tio me perguntou se queria que ele me fizesse um carrinho de madeira. Como sempre envergonhado, respondi que não queria dar trabalho ao tio.
Ele levantou-se e disse-me para arranjar uns pneus de bicicleta velhos. Bem, saí a correr e acho que conduzi de Ferrari, tal a velocidade e o entusiasmo. Cheguei num ápice, com 2 pneus na mão. O meu tio já tinha reunido um conjunto de tábuas e troncos.
Era já tarde e tinha de voltar para casa. Mas eu queria ficar ali, mas não podia.
- Amanhã de manhã, continuamos!
Quase nem dormi… que impaciência para que o dia nascesse de novo.
A minha ansiedade ia crescendo de dia para dia. A construção demorou, mais ou menos, duas semanas. O meu tio era muito perfeito naquilo que fazia. Tudo ao pormenor.
(Tenho a imagem do “carroço” bem presente na minha memória. Uma roda à frente encaixada numa “forquilha” de madeira que fora arredondada, na parte superior, até ao volante. Na roda tinha ainda um suporte em ferro para colocar os pés. O corpo tinha duas tábuas arredondadas e magistralmente suaves que serviam de assento. Na parte traseira, duas rodas de madeira também revestidas com os velhos pneus de bicicleta, pregados com tachas. O eixo, de nogueira, estava perfeito. O travão, com um cabo de madeira, colocado ao lado do volante, estava ligado com um arame que vinha a uma ripa de madeira que encostava a ambas as rodas traseiras. Foi ainda colocada uma matrícula de motorizada).
Era chegado o grande dia… Podia, finalmente, andar no meu “carroço”.
Agradeci ao meu tio. Ele olhou para os meus olhos repletos de entusiasmo e felicidade e apenas me disse:
- Tu mereces! Agora, tem cuidado!
Que orgulho!
Empurrando-o, caminho acima, despachei-me a mostrá-lo à minha avó. Logo depois, aproveitei a descida e fui apresentá-lo aos meus amigos das Pousadas. Todos empurraram, todos se divertiram. Que felicidade a minha!
Nos dias seguintes, a brincadeira era sempre com o “carroço”. No meu quintal, com enxadas, abrimos caminhos como se de uma pista se tratasse. Ali, passámos muitas horas, muitos dias.
Certo dia, privilegiando a amizade, decidi que iria deixá-lo uma semana nas Pousadas para que, na minha ausência, os meus amigos também pudessem usufruir dele e se divertirem. Eu também já não teria de o transportar e brincava do mesmo modo. Assim, foi.
Na semana seguinte, era altura de o levar para casa. Queria voltar a percorrer os caminhos do quintal que já estavam a ganhar ervas. Contudo, os meus amigos permaneceram todos em silêncio. O que se passava? Foi então que um deles (já não me lembro quem) o trouxe. A parte de cima tinha pregadas duas “tábuas de prancha”, ainda com algum cimento colado. Que se tinha passado?
Quatro irmãos que queriam andar todos ao mesmo tempo. Tinham-se zangado e o senhor Alberto pegou num machado e acabou com a briga.
Um bocadinho amuado, comecei a empurrar o “carroço” até à minha casa. Chegado, fiquei ali sentado a olhar para ele. O que iria eu dizer ao meu tio? Era melhor nem mostrar…
O carroço, durante mais uns anos, fez parte do meu dia-a-dia, da minha felicidade.
Até que um malogrado dia, o deixei atrás do camião amarelo, do Bedford. O meu pai não se apercebeu e… foi o seu fim!
Andei semanas cabisbaixo, triste.
Hoje, passados trinta anos, recordo com saudade o meu “carroço”, sabendo que cumpriu a sua função na minha vida.
Obrigado, “carroço”, obrigado, tio Daniel!

Marco Alves, 23 de maio de 2020
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