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Pampas frágeis
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DE PASSARINHO A AVE DE RAPINA

  • Foto do escritor: Marco Alves
    Marco Alves
  • 28 de jul. de 2020
  • 3 min de leitura

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Cantos suaves na brisa matinal, davam o mote para mais um dia.

O pinheiro-manso, circundado de giestas, eucaliptos e sobreiros, tinha um ninho esplendoroso. Bem lá no alto, uma casca de ovo quebrava e, do seu interior, um ser vivo procurava a luz do dia. Era o seu primeiro esforço, uma espécie de libertação.

Os dias foram passando e o seu corpo, a cada minuto, ia sofrendo mutações. As penas, o bico e as patas transformavam-se repentina e extraordinariamente.

Era alimentado materna e paternalmente. Adorava formigas. Eram saborosas e inofensivas. Logo depois, soltava as asas e queria experimentar a sensação dos seus pais.

Semanas depois, decidiu que já não seria um passarinho… queria ser pássaro e voar. Destemido, ganhou coragem e lançou-se do alto pinheiro-manso. Ficou assustado, porque perdeu altitude e estava já prestes a embater no chão. Seria fatal! Contudo, uma força natural deu-lhe força para começar a bater energicamente as asas e poder finalmente voar…

Não ganhou muita altitude, mas conseguiu planar e esbarrar mais calmamente numas acácias.

Agora, que estava no solo, olhava para o alto e via que tinha de lutar e chegar de novo às alturas.

Foi bicando mais umas formigas e, no rego de água, saciou a sua sede.

A mãe, preocupada, desceu e tentou dar-lhe as primeiras lições. Mas o passarinho queria ser pássaro e não a seguiu. Decidiu que a sua saída, ainda precoce do ninho, seria a sua emancipação.

Chegada a noite, estava metido num buraco de um muro. A mãe voltou apoquentada e encostou-se a ele, durante a noite.

Ao amanhecer, alvoraçada, a mãe saltava e chilreava constantemente. Uma cobra ansiava a sua refeição. Na proteção natural à cria, a mãe acabou por não resistir à insistente rastejadora. Após tal cenário, não havia mais nada a fazer… saiu da toca e voou, pela primeira vez, consistentemente e conseguiu regressar ao ninho.

No entanto, faltava a mãe… já não lá chegavam as formigas.

Tinha de fazer-se à vida, agora, consciente dos perigos.

E assim foi. Inicialmente, saltava com os piscos e os pardais e divertia-se. Era uma dança linda de se ver. Que alegria, que descontração!

Mas o tempo fez com que se afastasse e procurasse estar mais tempo sozinho. Ia encorpando, de dia para dia, e esse seu aspeto dava-lhe uma confiança e um orgulho maiores.

Agora, depois de vinte ou trinta formigas, insaciado, procurava os piscos e os pardais. Era um rebuliço. Já não eram amigos, seriam o seu farnel. As brincadeiras das correrias anteriores eram agora a sério.

Do alto do pinheiro-manso, a cada dia, elevava as penas e empolgava o seu peito… sentia-se seguro e poderoso. Agora, graúdo, já nada teria a temer. Era, finalmente, um milhafre adulto.

As formigas continuavam o seu trabalho… as preocupações com o perigo não as desviam do seu caminho e da sua labuta.

Os piscos e os pardais continuavam a saltitar alegremente com uma descontração própria de quem quer viver uma vida feliz.

O milhafre observava-os. Enervado e a sentir-se provocado, decide descer a tentar apanhá-los. Num voo sublime, tem uma aterragem desastrosa contra umas acácias. Os piscos e pardais fugiram. Uma cobra, já fartada, rodeou-o e tirou-lhe algum sufoco, deixando enfraquecido, ali no chão húmido. Apenas, uma ou outra tentativa de levantar a cabeça, mas as forças escasseavam, ao tinha força. Teria de esperar para recuperar. Os pardais e os piscos olhavam piedosamente para o estado daquele que, outrora, fora o seu companheiro de grandes brincadeiras.

Infelizmente, para o adulto e poderoso milhafre, umas formigas apoderaram-se do seu corpo e, lentamente, tomaram conta do seu corpo e deram fim à sua vida, tomando-o, agora a ele, como seu alimento.


Pensamento: Podemos ser ambiciosos, podemos ser enormes. Nunca podemos é deixar de desrespeitar quem nos ampara, quem nos alimenta e quem o respeita. Há sempre um dia em que a nossa conduta pode ser a nossa desgraça.


Marco Alves, 28 de julho de 2020


 
 
 

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