top of page
Pampas frágeis
Buscar

A ÁGUA QUE CORRE PELOS REGOS

  • Foto do escritor: Marco Alves
    Marco Alves
  • 31 de mai. de 2020
  • 2 min de leitura

ree

Depois de um inverno chuvoso, em que abundavam estrondosos raios de trovão que provocavam um estonteante medo (eram os invernos de antigamente), chegava o ardente sol.

(De notar que cada uma das estações marcava a sua presença de uma forma bem vincada)

O outono e os ventos fortes mudavam completamente toda a vegetação. As folhas húmidas, acumuladas no chão, completavam um vastíssimo e deslumbrante tapete castanho.

O inverno trazia fortes trovoadas e chuvas intensas. Os valados desmoronavam-se, as lâmpadas de casa emitiam uma luz inconstante e as velhas televisões a preto e branco tinham rapidamente de ser desligadas.

A primavera permitia a germinação, o florir, o verde, assim como, o retorno de muitas aves, acompanhadas dos seus peculiares cantos. Reapareciam as cores e a felicidade inocente das crianças.

O verão, esse, fazia jus ao nome: muito calor! Era, de facto abrasador. O verão não dava tréguas à chuva ou ao frio, era imponente e intransigente na sua função.

Eu só pensava nos mergulhos no tanque. A água fresca refrescava o corpo e as ideias.

Com os braços apoiados na borda do tanque, fitava as rapa-colheres, no fundo, enquanto ia olhando para o que, em cima, estava ao meu redor. As pedras do tanque queimavam. Com as mãos ia apanhando água e, deste modo, tentando arrefecê-las. Ao longe, mais abaixo, via a minha mãe a aproximar-se. Quando se apercebeu que a estava a observar, bradou:

- Abre o tanque, Marco! Quero regar!

Apesar de ser um tanque grande, sabia que quase toda a água ia agora pelos regos afora. Lembrei-me, então, de partir um cano de pinheiro e colocar no rego. Do topo da quinta, foi-o seguindo, desobstruindo o caminho. No entanto, os regos canalizavam a água para tantos regadios que a minha função era descobrir qual o canal que levava aquele cano de pinheiro mais longe.

Em baixo, a minha mãe gritava:

- Vê lá se tens cuidado com as cobras!

Ao ouvir estas palavras, o calor que sentia, na parte superior do meu corpo, gelava… Que medo! Será que poderiam estar ali cobras?

Contudo, ganhei coragem e prossegui. (A minha mãe também andava descalça a regar há anos).

A água deslizava rapidamente e entranhava-se na terra seca. Durante mais de duas horas, pés na água, fui observando e acompanhando um percurso, aparentemente banal, mas que ia dar vida, dar alimento a tanta coisa que, mais tarde, viria para cima da nossa mesa. Como era possível? Com tão pouca coisa, com tão grande simplicidade, os frutos, os vegetais iam crescendo e amadurecendo.

Depois de um dia intenso, adormeci cedo… sonhei com uma “cobra escada” enorme que vinha na minha direção. A minha fuga era lenta e a aproximação rápida… escapulia por entre os tomateiros e as poças das melancias…

Acordei sobressaltado, aos gritos!

Eram sete da manhã e, apesar do pesadelo, tinha uma vontade enorme de voltar ao regadio. Era a água, era a vida, era só mais um dia da minha vida!


Marco Alves, 31 de maio de 2020

 
 
 

Comments


© Copyright

©2023 Marco Alves

  • alt.text.label.Facebook
  • alt.text.label.YouTube
  • alt.text.label.Facebook
bottom of page